COMUNIDADE
A busca por segurança no mundo atual
Zygmunt Bauman
Uma introdução ou bem-vindos à esquiva comunidade
As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações. A palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer que “comunidade” signifique, é bom “ter uma comunidade,” “estar numa comunidade”. Se alguém se afasta do caminho certo, freqüentemente explicamos sua conduta reprovável dizendo que “anda em má companhia”. Se alguém se sente miserável, sofre muito e se vê persistentemente privado de uma vida digna, logo acusamos a sociedade — o modo como está organizada e como funciona. As companhias ou a sociedade podem ser más; mas não a comunidade. Comunidade, sentimos, é sempre uma coisa boa. Os significados e sensações que as palavras carregam não são, é claro, independentes. “Comunidade” produz uma sensação boa por causa dos significados que a palavra “comunidade” carrega — todos eles prometendo prazeres e, no mais das vezes, as espécies de prazer que gostaríamos de experimentar, mas que não alcança mais.
Para começar, a comunidade é um lugar “cálido”, um lugar confortável e aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. Lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que estar alertas quando saímos, prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala, estar de prontidão a cada minuto. Aqui, na comunidade, podemos relaxar — estamos seguros, não há perigos ocultos em cantos escuros (com certeza, dificilmente um “canto” aqui é “escuro”). Numa comunidade, todos nos entendemos bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos entre nós. Podemos discutir — mas são discussões amigáveis, pois estamos tentando tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais agradável do que até aqui e, embora levados pela mesma vontade de melhorar nossa vida em comum, podemos discordar sobre como fazê-lo. Mas nunca desejamos má sorte uns aos outros, e podemos estar certos de que os outros à nossa volta nos querem bem. E ainda: numa comunidade podemos contar com a boa vontade dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé outra vez. Ninguém vai rir de nós, nem ridicularizar nossa falta de jeito e alegrar-se com nossa desgraça. Se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar explicações e pedir desculpas, arrepender-nos se necessário; as pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para sempre. E sempre haverá alguém para nos dar a mão em momentos de tristeza. Quando passarmos por momentos difíceis e por necessidades sérias, as pessoas não pedirão fiança antes de decidirem se nos ajudarão; não perguntarão como e quando retribuiremos, mas sim do que precisamos. E raramente dirão que não é seu dever ajudarmos nem recusarão seu apoio só porque não há um contrato entre nós que as obrigue a fazê-lo, ou porque tenhamos deixado de 1er as entrelinhas. Nosso dever, pura e simplesmente, é ajudar uns aos outros e, assim, temos pura e simplesmente o direito de esperar obter a ajuda de que precisamos. E assim é fácil ver por que a palavra “comunidade” sugere coisa boa. Quem não gostaria de viver entre pessoas amigáveis e bem intencionadas nas quais pudesse confiar e de cujas palavras e atos pudesse se apoiar? Para nós em particular — que vivemos em tempos implacáveis, tempos de competição e de desprezo pelos mais fracos, quando as pessoas em volta escondem o jogo e poucos se interessam em ajudar-nos, quando em resposta a nossos pedidos de ajuda ouvimos advertências para que fiquemos por nossa própria conta, quando só os bancos ansiosos por hipotecar nossas posses sorriem desejando dizer “sim”, e mesmo eles apenas nos comerciais e nunca em seus escritórios — a palavra “comunidade” soa como música aos nossos ouvidos. O que essa palavra evoca é tudo aquilo de que sentimos falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes. Em suma, “comunidade” é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, em nosso alcance — mas no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir. Raymond Williams, atento analista de nossa condição comum, observou de modo cáustico que o que é notável sobre a comunidade é que “ela sempre foi”. Podemos acrescentar: que ela sempre esteve no futuro. “Comunidade” é nos dias de hoje outro nome do paraíso perdido — mas a que esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos que podem levar-nos até lá. Paraíso perdido ou paraíso ainda esperado; de uma maneira ou de outra, não se trata de um paraíso que habitemos e nem de um paraíso que conheçamos a partir de nossa própria experiência. Talvez seja um paraíso precisamente por essa razão. A imaginação, diferente das duras realidades da vida, é produto da liberdade desenfreada. Podemos “soltar” a imaginação, e o fazemos com total impunidade — porque não teremos grandes chances de submeter o que imaginamos ao teste da realidade.
Não é só a “dura realidade”, a realidade declaradamente “não comunitária” ou até mesmo hostil à comunidade, que difere daquela comunidade imaginária que produz uma “sensação de aconchego”. Essa diferença apenas estimula a nossa imaginação a andar mais rápido e torna a comunidade imaginada ainda mais atraente. A comunidade imaginada (postulada, sonhada) se alimenta dessa diferença e nela viceja. O que cria um problema para essa clara imagem é outra diferença: a diferença que existe entre a comunidade de nossos sonhos e a “comunidade realmente existente”: uma coletividade que pretende ser a comunidade encarnada, o sonho realizado, e (em nome de todo o bem que se supõe que essa comunidade oferece) exige lealdade incondicional e trata tudo o que ficar aquém de tal lealdade como um ato de imperdoável traição. A “comunidade realmente existente”, se nos achássemos a seu alcance, exigiria rigorosa obediência em troca dos serviços que presta ou promete prestar. Você quer segurança? Abra mão de sua liberdade, ou pelo menos de boa parte dela. Você quer poder confiar? Não confie em ninguém de fora da comunidade. Você quer entendimento mútuo? Não fale com estranhos, nem fale línguas estrangeiras. Você quer essa sensação aconchegante de lar? Ponha alarmes em sua porta e câmeras de tevê no acesso. Você quer proteção? Não acolha estranhos e abstenha se de agir de modo esquisito ou de ter pensamentos bizarros. Você quer aconchego? Não chegue perto da janela, e jamais a abra. O nó da questão é que se você seguir esse conselho e mantiver as janelas fechadas, o ambiente logo ficará abafado e, no limite, opressivo. Há um preço a pagar pelo privilégio de “viver em comunidade” — e ele é pequeno e até invisível só enquanto a comunidade for um sonho. O preço é pago em forma de liberdade, também chamada “autonomia”, “direito à auto-afirmação” e “à identidade”. Qualquer que seja a escolha, se ganha alguma coisa e perde-se outra. Não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade. A segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem atrito. De qualquer modo, nenhuma receita foi inventada até hoje para esse ajuste. O problema é que a receita a partir da qual as “comunidades realmente existentes” foram feitas torna a contradição entre segurança e liberdade mais visível e mais difícil de consertar.
Dados os atributos desagradáveis com que a liberdade sem segurança é sobrecarregada, tanto quanto a segurança sem liberdade, parece que nunca deixaremos de sonhar com a comunidade, mas também jamais encontraremos em qualquer comunidade autoproclamada os prazeres que imaginamos em nossos sonhos. A tensão entre a segurança e a liberdade e, portanto, entre a comunidade e a individualidade, provavelmente nunca será resolvida e assim continuará por muito tempo; não achar a solução correta e ficar frustrado com a solução adotada não nos levará a abandonar a busca — mas a continuar tentando. Sendo humanos, não podemos realizar a esperança, nem deixar de tê-la. Pouco resta fazer para fugir ao dilema — podemos negá-lo por nossa conta e risco. Uma boa coisa a fazer, contudo, é avaliar as chances e perigos das soluções já propostas e tentadas. Armados de tal conhecimento estaremos aptos ao menos a evitar a repetição de erros do passado; ou mesmo tentar evitar ir muito longe por caminhos que podem ser percebidos por antecipação como sem saída.
Não seremos humanos sem segurança ou sem liberdade; mas não podemos ter as duas ao mesmo tempo e ambas na quantidade que quisermos. Isso não é razão para que deixemos de tentar (não deixaríamos nem se fosse uma boa razão). Mas serve para lembrar que nunca devemos acreditar que qualquer das sucessivas soluções transitórias não mereceria mais ponderação nem se beneficiaria de alguma outra correção. O melhor pode ser inimigo do bom, mas certamente o “perfeito” é um inimigo mortal dos dois.
Março de 2000
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