terça-feira, junho 26, 2007

A Mulher-esqueleto



“Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegaçãode que a enseada era mal-assombrada.O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu - logo em que! - nos ossos das costelas da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: “Oba, agora peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!” Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado a superfície e caia suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos. - Agh! - gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte.
- Agh! - berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia.
Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás.
Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.- Aaagggggghhhh! - uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saia correndo agarrado a vara de pescar.
E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso a linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou.
Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou se direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro.
Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também a todo-generosa Sedna, em segurança, afinal. Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela - aquilo - jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro,um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um que de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.- Oh, na, na, na. - Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos.- Oh, na, na, na. - Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano.Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra - não tinha coragem - para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá embaixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos.O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando.
Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima a luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo,e pôs a boca junto a lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu,bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homemque dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte.
Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!... Bom, Bomm!Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.- Carne, carne, carne! Carne, carne, carne!- E quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de carne.Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficientepara se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormiae se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro,enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d'água.
As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem.”
Clarissa Pinkola Estés, em Mulheres que correm com os lobos
Imagem: Auto-retrato com a morte, Edward Munch

quarta-feira, junho 20, 2007

Um artigo de Rosana Braga: "Procuram-se beijos que satisfaçam"

http://somostodosum.ig.com.br/conteudo/conteudo.asp?id=6400&onde=2

Um beijo e um abraço bem gostoso!

segunda-feira, junho 18, 2007

Tantra XI, Tantra I

Depois de um fim de semana tão delicioso, cheio de dança, carícias, aconchegos, e tesão, será um mecanismo interno essa raiva toda? Num momento me sinto tão livre, querida, acolhida, reconhecida, e, em seguida, me revolto por não ter a atenção de uma confidente virtual do cara com quem estava "ficando" (vocabulário novíssimo que acabo de reconhecer!). Como diz o Gabriel, "a gente gasta uma energia tremenda com a nossa mente reptiliana", e não consegue se desvencilhar a tempo de velhas perversões que parecem acompanhar aquilo que chamamos de amor, mas talvez não passe de condicionamento!
Eu pego pesado? To aprendendo a pegar mais leve, a deixar ir o que me faz mal, a não insistir em vícios sem questioná-los, nem que seja pra só compreender melhor, por enquanto, a minha loucura. Ficar leviana também não quero, não quero ficar só na superfície brincando de parecer. A superfície é erótica, a profundidade é tântrica, a relação dialética. Integrar superfície e âmago é o desafio da maturidade, e num momento de globalização glamourizada da eterna juventude, uma escolha heróica.
Ficar no conforto da eterna sedução já não supre meu desejo.

terça-feira, junho 12, 2007


Imagem: "O abraço" por Egon Schiele
Mesmo querendo, não vou me enganar: tudo é passageiro, motorista sou eu! Verde, amarelo, vermelho... verde de novo, lá vou. Sozinha. Inteira. Plena.

terça-feira, junho 05, 2007


Fui vasculhar meus cadernos, e saltaram montes de sincronicidades de cada página que li ao acaso. Parecem até interpretações do I Ching! Também passeei por marcos históricos de mim, episódios sem os quais, definitivamente, eu não seria quem sou. Canções que criei e toquei e cantei tanto, começaram a ressoar nas vozes de amigos queridos, alguns que nem estão mais aqui.

É surpreendente o que se pode aprender com a gente mesmo! E é uma sensação muito singular a de estar lendo a mim mesma quando ainda era outra, anos e anos depois. Várias outras, em cada período aleatoriamente revisto...

Os cadernos tem essa magia, estão sempre lá, e um belo dia se abrem novamente pra nós. Será que um dia haverá maneira de revirar tão aleatoriamente as páginas e registros do blog pra me reencontrar com pedaços esparsos da minha alma?
Bel

sexta-feira, junho 01, 2007

Oração à Mãe Terra

Mãe – Terra ajudai-nos a encontrar, dentro do nosso coração, a força e a determinação da semente, que vence a escuridão da terra, a resistência da casca, e avança em direção aos raios do Sol, só para realizar plenamente o ofício de existir.
Dai-nos a fecundidade da terra úmida, que acolhe todas as sementes, abençoa e nutre todos os brotos e continua de braços abertos pra acolher o fruto que cai, ou a árvore que já esgotou o tempo de ficar em pé e deita, para sempre, no colo bendito da Mãe.
Que cada ser vivente, consiga descobrir dentro e si, a força do jacarandá; a beleza da flor que abre e confia; a generosidade do fruto que se oferece, sem restrições; a flexibilidade da taboa; a determinação das ondas que sempre retornam; a transparência e a pureza da água que jorra da nascente...
Ensinai-nos a acolher, nutrir e proteger todos os filhos da Terra, para que a Vida seja leve como o vôo da borboleta e bela como um entardecer do outono.
Que nosso coração saiba que o Sol está escondido por detrás das nuvens, quando chegar a época das tempestades e o medo tomar conta da nossa Alma.
E, quando chegar o tempo de deixar o tempo, dai-nos a sabedoria e a humildade para aceitar esse colo sagrado, este último berço, que está preparado, desde sempre, para acolher o nosso corpo cansado e carente de silencio e paz.

Miriam Morata Novaes
Buana – Um jornal Animal

Magus – Jornal Interativo

Imagem: "Gaia & NGC 4414" by C Bangs