sábado, junho 26, 2010

Debaixo D'agua

Arnaldo Antunes


Debaixo d'água tudo era mais bonito

Mais azul, mais colorido

Só faltava respirar

Mas tinha que respirar



Debaixo d'água se formando como um feto

Sereno, confortável, amado, completo

Sem chão, sem teto, sem contato com o ar

Mas tinha que respirar

Todo dia

Todo dia, todo dia

Todo dia

Todo dia, todo dia



Debaixo d'água por encanto sem sorriso e sem pranto

Sem lamento e sem saber o quanto

Esse momento poderia durar

Mas tinha que respirar



Debaixo d'água ficaria para sempre, ficaria contente

Longe de toda gente, para sempre no fundo do mar

Mas tinha que respirar

Todo dia

Todo dia, todo dia

todo dia

Todo dia, todo dia



Debaixo d'água, protegido, salvo, fora de perigo

Aliviado, sem perdão e sem pecado

Sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar

Mas tinha que respirar



Debaixo d'água tudo era mais bonito

Mais azul, mais colorido

Só faltava respirar

Mas tinha que respirar

Todo dia



Agora que agora é nunca

Agora posso recuar

Agora sinto minha tumba

Agora o peito a retumbar

Agora a última resposta

Agora quartos de hospitais

Agora abrem uma porta

Agora não se chora mais

Agora a chuva evapora

Agora ainda não choveu

Agora tenho mais memória

Agora tenho o que foi meu

Agora passa a paisagem

Agora não me despedi

Agora compro uma passagem

Agora ainda estou aqui

Agora sinto muita sede

Agora já é madrugada

Agora diante da parede

Agora falta uma palavra

Agora o vento no cabelo

Agora toda minha roupa

Agora volta pro novelo

Agora a língua em minha boca

Agora meu avô já vive

Agora meu filho nasceu

Agora o filho que não tive

Agora a criança sou eu

Agora sinto um gosto doce

Agora vejo a cor azul

Agora a mão de quem me trouxe

Agora é só meu corpo nu

Agora eu nasco lá de fora

Agora minha mãe é o ar

Agora eu vivo na barriga

Agora eu brigo pra voltar

Agora

Agora

Agora

Imagem colhida em http://www.imagensporfavor.com/buscar/2/me+nsagens.htm

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Certamente dá vontade de ficar mergulhado, e tantas vezes a gente segura o ar até não mais poder, até chegar o momento irreversível de renovar, crescer, soltar, se encher, trocar, respirar. Agora.
 
Anabel

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