sábado, março 29, 2008


Estava lendo a lenda do Barba Azul¹, e lembrando que quando eu era criança e a conheci, provavelmente na versão de Charles Perrault, achei que quem tinha feito a coisa errada era a esposa, ao desrespeitar o aviso que ele lhe dera sobre não usar "aquela" chavinha especial, apesar de torcer para que ela escapasse do destino fatal que a aguardava...
Só agora compreendi o significado que essa estória encerra! O jogo que ele fazia com todas as esposas que tivera, era justamente o de seduzí-las com esse aviso, para então matá-las. Mataria de todo jeito, pois um palácio, por maior que seja, é ainda uma gaiola, se dele não se pode sair; e ficar à vontade nele, desde que não se tenha a curiosidade de conhecer seus mistérios, é o mesmo que estar mais ou menos livre... Mais ou menos livre? Ter a ilusão de ser livre, quando na verdade se é prisioneira. Morta em sua autonomia.
Se ela não abre a porta com a chave misteriosa, fica domesticada, sempre obediente e passiva, afasta-se dos instintos e perde o contato com seu Eu profundo: faz o que é certo, o que é melhor para seu amo, para sua reputação, para os outros.
Se abre a porta, se depara com os ossos das mulheres assassinadas, contempla todo o horror oculto no suntuoso palácio, e tem que suportar a visão, encarar as sombras. Mas também desperta da atitude ingênua do "não é tão mau assim", e com a chave do mistério, pode livrar-se do predador que lhe preparou tal armadilha. Fica mais astuciosa, volta a acreditar naquela voz que no primeiro encontro lhe disse "há algo muito estranho e tenebroso por trás dessa barba-azul", e que depois se ilude com algumas cintilâncias e demonstrações de gentileza, que não passavam de manobras de sedução para a morte certa. E volta a tomar posse de sua alma, se reincorpora, entra em seu próprio corpo novamente. Fica mais dona de si.
Penso que a maioria das mulheres já deve estar associando o Barba Azul com alguém que passou por sua vida... e eles existem! Mas o Barba Azul mais perigoso, o que mata nosso desejo de ir até o fim nas nossas investigações da vida, em nossos projetos, seguir nossas intuições, agir de acordo com nossos anseios mais profundos, e não em função do que dirão por aí, o que vão pensar, com deve comportar-se uma donzela, e que tais, mora dentro de nós. E só ao encarar o que há nos nossos porões sombrios, reconhecendo nossos aspectos assassinados, conseguimos de fato nos reapropriar de nosso corpo/alma. Resgatar nossa verdadeira identidade.
Não há chavezinha reluzente que possa trancar por toda uma existência aquilo que foi negado e anulado na construção do nosso ser. Não há riqueza, magia, aparências de felicidade e bem estar, que possam cobrir os ossos - "aquilo que não pode nunca ser destruído"²- de nossas mortes, nossas frustrações.
Para abrir a porta, além da curiosidade, é preciso coragem. Coragem para desobedecer, coragem para encarar o que quer que esteja atrás daquela porta, coragem para sustentar-se reconhecendo o que há na escuridão, coragem para enganar o predador que nos castra a alma dizendo - até aqui já é suficiente, melhor não dar mais um passo, seja uma boa moça, não seja curiosa! -, e buscar apoio nas irmãs, acenar para os irmãos que nos habitam, e os que nos rodeiam, nossos anseios profundos, sonhos que ainda clamam por relização, amigos, nossa confiança em nossos instintos, em nossa intuição, em nós mesmas, e no poder da mulher. Coragem para descobrir e ser quem Eu realmente sou.
Afinal, se aquela porta não devesse de fato ser aberta, por que o Barba Azul deixaria sua chave no molho, junto com tal recomendação, ao invés de levá-la consigo em silêncio? (Como eu demorei para compreender isto!!!!!!!!!)

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Transcrevo a lenda segundo conta Clarissa Pinkola Estés¹, mas vale a pena ler o livro e ter um seu: emprestado, você vai relutar em devolver, e vai ficar chato... Algum dia, em algum momento, em fragmentos, ou de cabo a rabo, ele gritará para que você o leia, releia, folheie, use como inspiração, símbolo, farol, travesseiro... Sua intuição dirá: é agora.


"Existe uma mecha de barba que fica guardada no convento das freiras brancas nas montanhas distantes. Como chegou até o convento, ninguém sabe. Uns dizem que foram as freiras que enterraram o que sobrou do seu corpo, já que ninguém mais se dispunha a nele tocar. Desconhece-se o motivo pelo qual as freiras iriam guardar uma relíquia dessa natureza, mas é verdade. Uma amiga de uma amiga minha viu com seus próprios olhos. Ela diz que a barba é azul, da cor do índigo para ser exata. É tão azul quanto o gelo escuro no lago, tão azul quanto a sombra de um buraco à noite.Essa barba pertenceu um dia a alguém de quem se dizia ser um mágico fracassado,um homem gigantesco com uma queda pelas mulheres, um homem conhecido pelo nome de Barba-azul.
Dizia-se que ele cortejava três irmãs ao mesmo tempo. As moças tinham, porém, pavor de sua barba com aquele estranho reflexo azul e, por isso, se escondiam quando ele chamava. Num esforço para convencê-las da sua cordialidade, ele as convidou para um passeio na floresta. Chegou conduzindo cavalos enfeitados com sinos e fitas cor-de-carmim. Acomodou as irmãs e a mãe nos cavalos, e partiram a meio-galope floresta adentro. Lá passaram um dia maravilhoso cavalgando, e seus cães corriam a seu lado e à sua frente. Mais tarde, pararam debaixo de uma árvore gigantesca, e o Barba-azul as regalou com histórias e lhes serviu guloseimas.

“Bem, talvez esse Barba-azul não seja um homem tão mau assim”, começaram a pensar as irmãs. Voltaram para casa tagarelando sobre como o dia havia sido interessante e como haviam se divertido. Mesmo assim, as suspeitas e temores das duas irmãs mais velhas voltaram, e elas juraram que não veriam o Barba-azul de novo. A irmã mais nova, no entanto, achou que, se um homem podia ser tão encantador, talvez ele não fosse tão mau. Quanto mais ela falava consigo mesma, menos assustador ele lhe parecia, e sua barba também parecia ser menos azul. Portanto, quando o Barba-azul pediu sua mão em casamento, ela aceitou. Ela havia refletido muito sobre a sua proposta e concluído que ia se casar com um homem muito distinto. Foi assim que se casaram e, em seguida, partiram para seu castelo no bosque.
— Vou precisar viajar por algum tempo — disse ele um dia à mulher. — Convide sua família para vir aqui se quiser. Você pode cavalgar nos bosques, mandar os cozinheiros prepararem um banquete, pode fazer o que quiser, qualquer desejo que seu coração tenha. Para você ver, tome minhas chaves. Pode abrir toda e qualquer porta das despensas, dos cofres, qualquer porta do castelo; mas essa chavinha, a que tem no alto uns arabescos, você não deve usar.
— Está bem, vou fazer o que você pediu. Parece que está tudo certo. Portanto,
pode ir, meu querido, não se preocupe e volte logo. — E assim ele partiu, e ela ficou. Suas irmãs vieram visitá-la e elas sentiam, como todo mundo, muita curiosidade a respeito das instruções do dono da casa quanto ao que deveria ser feito enquanto ele estivesse fora. A jovem esposa falou alegremente:
— Ele disse que podemos fazer o que quisermos e entrar em qualquer aposento que desejarmos, com exceção de um. Só que eu não sei qual é esse aposento. Só tenho uma chave e não sei que porta ela abre. As irmãs resolveram fazer um jogo para ver que chave servia em que porta. O castelo tinha três andares, com cem portas em cada ala, e como havia muitas chaves no chaveiro, elas iam de porta em porta, divertindo-se imensamente ao abrir cada uma delas. Atrás de uma porta, havia uma despensa para mantimentos, atrás de outra, um depósito de dinheiro. Todos os tipos de bens estavam atrás das portas, e tudo parecia maravilhoso o tempo todo. Afinal, depois de verem todas aquelas maravilhas, elas acabaram chegando ao porão e, ao final do corredor, a uma parede fechada. Ficaram intrigadas com a última chave, a que tinha o pequeno arabesco.
— Talvez essa chave não sirva para abrir nada. — Enquanto diziam isso, ouviram um ruído estranho — errrrrrrrr. — Deram uma espiada na esquina do corredor e — que surpresa! — havia uma pequena porta que acabava de se fechar. Quando tentaram abri-la, ela estava trancada. — Irmã, irmã, traga sua chave — gritou uma delas. — Sem dúvida é essa a porta para aquela chavinha misteriosa. Sem pestanejar, uma das irmãs pôs a chave na fechadura e a girou. O trinco rangeu, a porta abriu-se, mas lá dentro estava tão escuro que nada se via. — Irmã, irmã, traga uma vela. — Uma vela foi acesa e mantida no alto um pouco para dentro do aposento, e as três mulheres gritaram ao mesmo tempo, porque no quarto havia uma enorme poça de sangue; ossos humanos enegrecidos estavam jogados por toda a parte e crânios estavam empilhados nos cantos como pirâmides de maçãs. Elas fecharam a porta com violência, arrancaram a chave da fechadura e se apoiaram umas nas outras arquejantes, com o peito arfando. Meu Deus! Meu Deus! A esposa olhou para a chave e viu que ela estava manchada de sangue. Horrorizada, usou a saia para limpá-la, mas o sangue prevaleceu. — Oh, não! — exclamou. Cada uma das irmãs apanhou a chave minúscula nas mãos e tentou fazer com que voltasse ao que era antes, mas o sangue não saía. A esposa escondeu a chavinha no bolso e correu para a cozinha. Quando lá chegou, seu vestido branco estava manchado de vermelho do bolso até a bainha pois a chave vertia lentamente lágrimas de sangue vermelho-escuro. — Rápido, rápido, dê-me um esfregão de crina — ordenou ela à cozinheira. Esfregou a chave com vigor, mas nada conseguia deter seu sangramento. Da chave minúscula transpirava uma gota após outra de sangue vermelho. Ela levou a chave para fora, tirou cinzas do fogão a lenha, cobriu a chave de cinzas e esfregou mais. Colocou-a no calor do fogo para cauterizá-la. Pôs teia de aranha nela para estancar o fluxo, mas nada conseguia deter as lágrimas de sangue. — Ai, o que vou fazer? — lamentou-se ela. — Já sei, vou guardar a chave. Vou colocá-la no guarda-roupa e fechar a porta. Isso é um pesadelo. Tudo vai dar certo. — E foi o que fez. O marido chegou de volta exatamente na manhã do dia seguinte e entrou no castelo já procurando pela esposa. — E então, como foram as coisas enquanto eu estive fora? — Tudo correu bem, senhor. — Como estão minhas despensas? — trovejou o marido. — Muito bem, senhor. — E como estão meus depósitos de dinheiro? — rosnou ele. — Os depósitos de dinheiro também estão bem, senhor. — Então, tudo está certo, esposa? — É, tudo está certo. — Bem — sussurrou ele —, então é melhor devolver minhas chaves. Com um relancear de olhos, ele percebeu a falta de uma chave. — Onde está a menorzinha? — Eu... eu a perdi. É, eu a perdi. Estava passeando a cavalo, o chaveiro caiu e eu devo ter perdido uma chave. — O que você fez com ela, mulher? — Não... não me lembro. — Não minta para mim! Diga-me o que fez com aquela chave!
Ele tocou seu rosto como se fosse lhe fazer um carinho, mas em vez disso a segurou pêlos cabelos. — Sua traidora! — rosnou, jogando-a ao chão. — Você entrou naquele quarto, não entrou? Ele abriu o guarda-roupa com brutalidade e a pequena chave na prateleira de cima havia sangrado, manchando de vermelho todos os belos vestidos de seda que estavam pendurados. — Chegou a sua vez, minha querida — berrou ele, arrastando-a pelo corredor e pelo porão adentro até pararem diante da terrível porta. O Barba-azul apenas olhou para a porta com seus olhos enfurecidos, e ela se abriu para ele. Ali jaziam os esqueletos de todas as suas esposas anteriores. — Vai ser agora!!! — rugiu ele, mas ela se agarrou ao batente da porta sem largar, implorando por clemência. — Por favor, permita que eu me acalme e me prepare para a morte. Conceda-me quinze minutos antes de me tirar a vida para que eu possa me reconciliar com Deus. — Está bem — rosnou ele. — Você tem seus quinze minutos, mas prepare-se. A esposa correu escada acima até seus aposentos e determinou que suas irmãs fossem para as muradas do castelo. Ajoelhou-se para rezar, mas, em vez de rezar, gritou para as irmãs. — Irmãs, irmãs, vocês estão vendo a chegada dos nossos irmãos? — Não vemos nada, nada na planície nua. A cada instante ela gritava para as muradas. — Irmãs, irmãs, estão vendo nossos irmãos chegando? — Vemos um redemoinho, talvez um redemoinho de areia bem longe. Enquanto isso, o Barba-azul esbravejava para que sua esposa descesse até o porão para ser decapitada. — Irmãs, irmãs! Estão vendo nossos irmãos chegando? — gritou ela mais uma vez. O Barba-azul berrou novamente pela esposa e veio subindo a escada de pedra com passos pesados. — Estamos, estamos vendo nossos irmãos — exclamaram as irmãs. — Eles estão aqui e acabam de entrar no castelo. O Barba-azul vinha pelo corredor na direção dos aposentos da esposa. — Vim apanhá-la — gritou ele. Suas passadas eram pesadas; as pedras no piso se soltavam; a areia da argamassa caía esfarinhada no chão. No instante em que o Barba-azul entrou nos aposentos com as mãos esticadas para agarrá-la, seus irmãos chegaram galopando pelo corredor do castelo ainda montados, entrando assim no quarto. Ali eles encurralaram o Barba-azul fazendo com que saísse até a balaustrada. E ali mesmo, com suas espadas, avançaram contra ele, golpeando e cortando, fustigando e retalhando, até derrubá-lo ao chão, matando-o afinal e deixando para os abutres o que sobrou dele."³


E lembre-se: só não use esta chave!!!! ;)

Anabel Andrés


¹ in "Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem", de Clarissa Pinkola Estés, RJ, Ed. Rocco, 1994
² ídem, p.80
³ ibídem, p.58-63

Um comentário:

  1. Bel, acabei de ler....preciso dormir com essa história algumas noites....!!Tô meio sem fôlego...deu um nó na garganta...Depois te falo mais sobre isso...Beijão.

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