segunda-feira, maio 14, 2007

Cântico Negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio, Poemas de Deus e do Diabo, p.124


Este poema foi interpretado por Maria Bethânia no álbum Nossos Momentos (1982), mas eu o conheci na interpretação do meu irmão Luiz. Luiz Claudio Valentim. Foi um cataclisma emocional recebê-lo assim: olhando direto em meus olhos aqueles olhos faiscantes, direto em meus ouvidos seu vozeirão grave e profundo. Era pra mim. E era tão verdadeiramente ele, que eu juraria que era ele o autor! Inesquecível. Intraduzível. Intransferível.

A interpretação de Bethânia é esplêndida, e aí vai um link, caso você queira ouví-la, e arrepiar-se. Mas no meu coração, na minha alma, nas minhas vísceras, é a reverberação e a interpretação contundente na voz do Luiz que ouço.
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Em Asas do Desejo (Win Wenders, 1987), um anjo decide tornar-se mortal para poder sentir como um humano, e viver sua paixão por uma trapezista, assumindo todas as conseqüências de sua escolha. Achei de uma beleza!

foto: Bruno Ganz em Asas do Desejo, dir. Win Wenders, 1987

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